27/12/2015

Textos Que Negam o “Livre-arbítrio” (Martinho Lutero)

Comentário de Lutero sobre o Estudo de Erasmo sobre a questão
(Portal Monergismo)

  • Argumento 1
O meu espírito não agirá para sempre no homem, pois este é carnal. (Gênesis 6.3)

Em primeiro lugar, você argumenta que a palavra “carnal”, neste verso, significa a fraqueza humana. Todavia, o sentido desse termo é o mesmo de 1 Coríntios 3.1-3, onde Paulo chama os coríntios de “carnais” ou “mundanos”. Paulo não está se referindo à fraqueza, mas à corrupção. No trecho citado, Moisés está se referindo a homens que se casavam movidos por mera concupiscência, os quais estavam enchendo a terra de violência, ao ponto em que o Espírito de Deus não podia mais suportá-los. Você observará que, nas Escrituras, sempre que a palavra “carne” é contrastada com a palavra “espírito”, ela significa tudo aquilo que se opõe ao Espírito de Deus.

Somente quando a palavra “carne” é usada isoladamente é que se refere ao corpo físico. A vista disto, essa passagem tem o seguinte significado: “Meu Espírito, que está em Noé e em outros homens santos, repreende os ímpios através da Palavra pregada, e através de suas vidas piedosas. Porém, isso é inútil, pois os ímpios estão cegos e endurecidos pela carne; e, quanto mais são julgados, piores se tornam”. Isso sempre acontece, e é óbvio que, se os homens vão de mal a pior, mesmo quando o Espírito de Deus opera entre eles, então, são totalmente impotentes sem o Espírito.

O “livre-arbítrio” não pode fazer nada além de pecar. Em seguida, você nos informa que o texto não se refere a todos os homens, mas somente àqueles que viveram naquela época. Mas, tal interpretação não é válida, pois Cristo afirmou acerca de todos os homens: “O que é nascido da carne, é carne...” (Jo 3.6). E Jesus acabara de sublinhar a seriedade dessa condição, ao dizer: “...se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus” (Jo 3.3). Por fim, você assevera que o texto não salienta o juízo de Deus, mas a sua misericórdia. Porém, tudo quanto você precisa fazer é ler o que vem antes e depois do texto. Não pode haver dúvida de que estas são as palavras de um Deus indignado. Portanto, esse texto se opõe ao “livre-arbítrio” e demonstra que no homem não há poder para fazer o bem, mas somente para merecer o juízo de Deus.

  • Argumento 2
  • ...porque é mau o desígnio íntimo do homem, desde a sua mocidade... (Gênesis 8.21)
    ...era continuamente mau todo desígnio do seu [do homem] coração. (Gênesis 6.5)

    Você procura esquivar-se do sentido evidente desse texto, ao dizer que há uma disposição para o mal na maioria das pessoas, mas que isso não lhes furta a liberdade da vontade. No entanto, Deus fala aqui sobre todos os homens e não somente acerca da maioria deles. Desde o dilúvio Deus está dizendo que não mais trataria os homens conforme eles merecem ser tratados. Se os tratasse assim, nenhum deles seria salvo. Tanto antes quanto após o dilúvio, Deus declarou que todos os homens são maus, e não apenas alguns deles. Você parece considerar o pecado no homem como coisa de pequena importância, como se fosse algo que pudesse ser facilmente corrigido. Entretanto, essa passagem está dizendo que toda a energia da vontade humana está em praticar o mal. Por que você não examina o texto hebraico original?

    Moisés de fato escreveu: “E viu o Senhor que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra, e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente” (Gn 6.5). Isso não é meramente uma tendência para o mal. Deus ensina que coisa alguma, senão a malignidade, é concebida ou imaginada pelo homem, durante toda a sua vida. No entanto, você poderia retrucar: “Nesse caso, por que Deus dá ao homem tempo para arrepender-se, se o homem não é capaz de arrepender-se?” A resposta, conforme já reiteramos antes, é que o fato de Deus nos dar mandamentos não implica nossa capacidade para obedecer. Deus nos diz qual é nosso dever, não a fim de provar que podemos observá-lo, mas a fim de humilhar-nos, até que admitamos nossa incapacidade!

  • Argumento 3
  • Consolai, consolai o meu povo, diz o vosso Deus. Falai ao coração de Jerusalém, bradai-lhe que já é findo o tempo da sua milícia, que a sua iniqüidade está perdoada e que já recebeu em dobro da mão do Senhor por todos os seus pecados. (Isaías 40.1-2)

    Esta passagem significa que o perdão de Deus é dado àqueles que são totalmente incapazes de obtê-lo ou merecê-lo em qualquer sentido. Você, entretanto, discorda disso. Insiste que o que está em pauta é a vingança de Deus contra os nossos pecados, e não a sua graça. Contudo, quando voltamo-nos para o Novo Testamento, descobrimos que esse trecho fala sobre o perdão do pecado, proclamado pelo evangelho! Analisemos o texto. Suponho que a palavra “consolo” não signifique a execução do julgamento de Deus! Em seguida o texto diz: “Falai ao coração de Jerusalém...” Isso significa: Dizei a Jerusalém palavras de amor doces e gentis. Além disso, as palavras “...tempo da sua milícia” referem-se ao terrível peso da luta para se merecer o perdão, através da obediência à lei (At 15.7-10).

    Esse tempo havia chegado ao fim por causa do perdão gratuito de Deus. Aquele povo já havia recebido “em dobro”, da mão do Senhor, o que quer dizer que receberam tanto a remissão dos pecados quanto o livramento da terrível carga imposta pela lei. Por isso se lê que o perdão envolvia “todos os seus pecados”, o que dá a entender que aquele povo caracterizava-se pelo pecado e nada mais que o pecado. Acrescente-se a isso que a graça não é a recompensa pelas tentativas do “livre-arbítrio”. A graça divina é concedida apesar do pecado e de tudo quanto ele merece.

  • Argumento 4
  • Uma voz diz: Clama; e alguém pergunta: Que hei de clamar? Toda a carne é erva, e toda a sua glória como a flor da erva; seca-se a erva, e caem as flores, soprando nelas o hálito do SENHOR. Na verdade o povo é erva. (Isaías 40.6-7)

    Você diz que a palavra “hálito”, nesse trecho bíblico, indica a ira de Deus, e que a palavra “carne” indica a fraqueza do homem que não dispõe de qualquer poder contra Deus. Mas, será que a ira de Deus não teria outra coisa para atacar, senão a infeliz debilidade humana? Ou, pelo contrário, o homem não deveria ser fortalecido? Depois disso, você afirma que as palavras “flor da erva” significam a glória que se deriva da prosperidade quanto às coisas materiais. Mas, é impossível que tal interpretação esteja correta. Os judeus gloriavam-se de seu templo, circuncisão e holocaustos. Os gregos gloriavam-se em sua sabedoria. Portanto, o que é disperso pelo sopro do Espírito de Deus é a assim chamada “justiça pelas obras”, bem como a sabedoria humana. Isso é confirmado pela alusão que Isaías faz a “toda a carne”. Somente algumas pessoas gloriam-se na prosperidade material, mas todos os homens, mui naturalmente, jactam-se de seus feitos e de sua sabedoria.

    A essa altura, é importante darmos atenção ao trecho de João 3.6: “O que é nascido da carne, é carne; e o que é nascido do Espírito, é espírito”. Esse texto mostra-nos, claramente, que tudo aquilo que não nasceu do Espírito de Deus é carne. Isso não quer dizer que somente uma porção, ou mesmo uma grande porção do homem natural consiste em carne. E certamente também não significa que a porção mais excelente do homem seja a sua carne. Antes, significa claramente que todos os homens destituídos do Espírito de Deus são “carne”, e, por conseguinte, estão sujeitos ao julgamento de Deus. Você pensa que isso não é verdade. Acredito que existem alguns homens que prefeririam morrer mil vezes, a praticarem um ato vil, ainda que fosse às ocultas e que Deus os viesse a perdoar. O fato é que você continua olhando somente para atos externos. Você precisa olhar para o coração humano. Mesmo que tais pessoas existissem, elas estariam operando para a sua própria glória, visto que, à parte do Espírito Santo, não teriam qualquer desejo de glorificar a Deus com as suas ações.

    Você também indaga se tudo quanto é chamado “carne”, necessariamente precisa ser considerado ímpio. E eu respondo: Sim. Um homem é ímpio se ele está sem o Espírito de Deus. As Escrituras ensinam que o Espírito é dado com a finalidade de justificar o ímpio. Jesus disse que quem nasceu da carne não pode ver o reino de Deus. Não existe um estágio intermediário entre o reino de Deus e o reino de Satanás. Se alguém não faz parte do reino de Deus, certamente faz parte do reino de Satanás. Em seguida, você pergunta: “Como posso ensinar que o homem não é nada, além de carne, mesmo quando é nascido do Espírito?” Onde você sonhou com tal coisa? Eu estabeleço uma clara distinção entre “carne” e “Espírito”. O homem que não nasceu do Espírito, é carne. A pessoa que nasceu do Espírito, é espírito – exceto apenas por aqueles elementos da natureza carnal que ainda restaram para perturbá-la.

  • Argumento 5
  • Eu sei, ó Senhor, que não cabe ao homem determinar o seu caminho, nem ao que caminha o dirigir os seus passos. (Jeremias 10.23)

    Uma vez mais, você distorce o claro sentido do texto. Você afirma que essas palavras significam que Deus, e não o homem, é o causador de acontecimentos que têm um final feliz, e que isto nada tem a ver com a ideia do “livre-arbítrio”. Mas, porventura, as palavras de Jeremias precisam de qualquer explicação?

    É óbvio que Jeremias simplesmente quis dizer que a obstinação do povo, ao rejeitar a Palavra de Deus, o havia convencido de que o homem por força própria, é incapaz de praticar o que é direito. Porém, mesmo supondo que a sua idéia esteja correta. Que benefício procede dela? Pois, se um homem não pode fazer os meros eventos naturais terminarem de modo feliz, como poderia fazer qualquer coisa proveitosa no que concerne ao seu destino espiritual? Você ainda argumenta que muitas pessoas reconhecem a sua necessidade da graça de Deus para viverem corretamente, afirmando que elas buscam essa graça orando diariamente pela ajuda divina, e que, ao assim fazerem, estão lançando mão do esforço humano. Mas, nem por isso você está comprovando o poder do “livre-arbítrio”. Pois quem solicitará a ajuda do Senhor, senão aqueles em quem habita o Espírito Santo? Aquele que ora, assim o faz pelo Espírito de Deus (Rm 8.26-27).

  • Argumento 6
  • O coração do homem pode fazer planos, mas a resposta certa dos lábios vem do SENHOR. (Provérbios 16.1)

    Você pretende que essa declaração também faça alusão apenas aos acontecimentos comuns da vida. E uma vez mais retruco que mesmo que você estivesse com a razão, isso tornaria ainda mais difícil para nós podermos decidir, por nós mesmos, nosso destino espiritual. E o fato que tudo quanto acontecerá no futuro está decidido por Deus, deveria produzir dentro em nós o temor do Senhor. Você vincula essa passagem a outros dois trechos extraídos do livro de Provérbios.

    O SENHOR fez todas as cousas para determinados fins, e até o perverso para o dia da calamidade. (Provérbios 16.4)

    Você faz bem ao salientar que tais palavras significam que Deus nunca criou qualquer criatura má. Bravo! Eu nunca disse que Ele fez tal coisa!

    Como ribeiros de águas, assim é o coração do rei na mão do SENHOR; este, segundo o seu querer, o inclina. (Provérbios 21.1)

    Você comenta que a palavra “inclina” não significa “compele”. E também, diz que o rei inclina-se para o mal pela permissão divina, a qual deixa o rei dar vazão às suas paixões. Porém, não importa se você entende isso como sendo a permissão de Deus, ou a inclinação efetuada por Ele; continua sendo verdade que nada acontece fora da vontade e da operação de Deus. O texto refere-se a apenas um homem – o rei. O que é verdade acerca do rei, é verdade acerca de todos os demais homens.

  • Argumento 7
  • Eu sou a videira, vós os ramos. Quem permanece em mim, e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer. (João 15.5)

    Esse foi o texto, acerca do qual eu disse que ninguém seria capaz de fugir, porém você se aproveita da palavra “nada”, para destruir seu significado. Você declara que “nada” significa nada “perfeitamente”, a fim de que o texto sagrado diga: “...porque sem mim nada podeis fazer perfeitamente”. A questão, porém, não é se esse texto pode significar isso, mas se ele realmente significa tal coisa.

    De acordo com a sua explicação, sem Cristo podemos fazer “um pouco, mesmo que imperfeitamente”. Desse modo, suponho que quando João 1.3 diz: “...sem ele nada do que foi feito se fez”, isto significa: “...sem ele, foi feito um pouco, mesmo que imperfeitamente”.

    Quanta ignorância! É extremamente perigoso manusear assim as Escrituras. Não é essa a maneira de chegar à consciência dos homens. Fique, portanto, claro que, nesse trecho, “nada” significa “nada”. Sob o domínio de Satanás, a vontade do homem nem mais é livre, nem tem domínio próprio; antes, é escrava do pecado e de Satanás, só podendo desejar o que seu príncipe lhe determina.

    Você ignora o que se lê em seguida nesse trecho:

    “Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora à semelhança do ramo, e secará; e o apanham, lançam no fogo e o queimam” (João 15.6).

    O homem, fora de Jesus Cristo, é totalmente inaceitável diante de Deus, e seu destino é ser lançado no fogo eterno. Não posso compreender por que você também cita 1 Coríntios 13.2 em apoio à sua posição:

    “Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conheça todos os mistérios e toda a ciência; ainda que eu tenha tamanha fé ao ponto de transportar montes, se não tiver amor, nada serei”.
    Se alguém está destituído do amor, sinceramente, ele nada representa diante de Deus, porquanto esse amor é um dom da graça. A questão, enfim, resume-se no seguinte: “nada” significa nada, e nada é capaz de alterar isso! À parte da graça, o homem nada pode fazer. O “livre-arbítrio” nada pode fazer e nada é.

  • Argumento 8
  • A cooperação do homem com Deus não comprova o “livre-arbítrio”. Você se utiliza de um bom número de ilustrações que descrevem a cooperação do homem com as operações divinas. Por exemplo: “o agricultor faz a colheita, mas é Deus que a dá”. E óbvio que tenho plena consciência da cooperação do homem com Deus, mas isso nada prova a respeito do “livre-arbítrio”. Deus é onipotente. Ele exerce total controle sobre tudo quanto Ele mesmo criou. E isso inclui os ímpios, os quais, à semelhança daqueles a quem Deus justificou e transportou para o seu reino, cooperam com Deus neste mundo. Todos os homens precisam seguir e obedecer àquilo que Deus intenciona que eles façam. O homem em nada contribuiu para a sua própria criação. E, uma vez criado, o homem não faz qualquer contribuição para permanecer dentro da criação de Deus. Tanto a sua criação como a sua contínua existência são inteira responsabilidade do soberano poder e bondade de Deus, que nos criou e preserva sem qualquer ajuda nossa.

    Antes de ser renovado, para fazer parte da nova criação do reino do Espírito, o homem em nada contribui para preparar-se para essa nova criação e reino. Por semelhante modo, quando ele é recriado, em coisa alguma contribui para ser conservado nesse reino. Somente o Espírito de Deus tanto nos regenera quanto nos preserva, sem qualquer ajuda de nossa parte. E como Tiago diz:

    “Pois, segundo o seu querer, ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos como que primícias das suas criaturas” (Tg 1.18).

    Tiago está falando a respeito da nova criação. Não obstante, Deus não nos regenera sem que tenhamos consciência do que está sucedendo, porque Ele nos recria e preserva precisamente com esse propósito: que venhamos a cooperar com Ele. E o que é atribuído ao “livre-arbítrio” em tudo isso? Que resta para o “livre-arbítrio”? Nada! Absolutamente nada!

  • Conclusão
  • Nesta controvérsia, não quero gerar mais calor do que luz. Porém, se cheguei a argumentar demasiadamente forte, reconheço a minha falta; se é que houve falta. Mas, não! Tenho a certeza de que o testemunho desta minha conduta é levado ao mundo em defesa da causa de Deus. Que Deus confirme este testemunho no Último Dia! Quem poderia sentir-se mais feliz do que eu? – aprovado pelo testemunho de outros, de haver defendido a causa da verdade, sem preguiça, nem enganosamente, mas com vigor suficiente e de sobra! Se pareci por demais áspero contra você, Erasmo, peço-lhe que me perdoe. Não agi assim movido por má vontade, mas a minha única preocupação era que, devido à importância do seu nome, você estivesse danificando a causa de Cristo. E quem pode governar sempre a sua pena, especialmente na ocasião de demonstrar zelo? Você mesmo, frequentemente, lança dardos inflamados contra mim. Mas essas coisas não pesam realmente no debate, e nós, que participamos dele, devemos perdoar-nos mutuamente por causa dessas coisas; somos apenas homens, e nada existe em nós que não faça parte das características da humanidade. Que o Senhor, a quem pertence esta causa, abra os seus olhos e o ajude a glorificá-Lo. Amém.

    Extraído de Nascido Escravo, Martinho Lutero. Editora Fiel, 1984
    (versão condensada do original, A Escravidão da Vontade, 1525).