11/01/2016

Jesus à porta do coração?!

Irmão Clóvis, Portal Cinco Solas

Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo. (Apocalipse 3.20)

O versículo de Apocalipse 3:20 é comumente utilizado para comprovar que Jesus está à porta batendo e é o homem que decide abrir ou não a porta. A aplicação feita é sempre em defesa do livre arbítrio do homem, em contraposição à doutrina da graça eficaz, pela qual Deus não apenas dá o desejo como a capacidade de crer nEle. A interpretação arminiana desse versículo é bem expressa na figura de Jesus do lado de fora de uma porta, segurando com uma das mãos uma luz e com a outra batendo em uma porta sem trinco. Uma legenda normalmente informa que a falta de trinco se explica pelo fato de a porta do coração só se abrir pelo lado de dentro.

Vamos estudar esse versículo sob dois aspectos, primeiro de forma isolada e depois em seu contexto e veremos se ele ensina o que alegam ensinar.

O versículo de forma isolada não ensina o livre arbítrio

O versículo coloca Jesus à porta, batendo e falando para que a abram. O que leva alguém abrir a porta é o ouvir a voz dEle. Uma vez aberta a porta, Ele entra na casa e faz uma refeição com quem a abriu. É impossível ir mais longe que isso na interpretação isolada dessa passagem.

É importante notar que palavras como livre arbítrio, vontade, querer e escolha sequer aparecem no texto, embora fique implícito que há duas possibilidade: abrir e não abrir. Mas não há uma declaração positiva a respeito do livre arbítrio nem uma interpretação natural e necessária que requeira isso.

Voltando ao ato condicionante do abrir a porta: o ouvir a voz de Cristo. O texto bíblico não diz "ao ouvir" mas "se ouvir", deixando claro que nem todos ouvem. Na pregação do Evangelho, o ouvir é fator determinante:

Inclinai os ouvidos e vinde a mim; ouvi, e a vossa alma viverá; porque convosco farei uma aliança perpétua, que consiste nas fiéis misericórdias prometidas a Davi. (Isaías 55:3)
Como, pois, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem não ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: Quão formosos os pés dos que anunciam a paz, dos que anunciam coisas boas! Mas nem todos obedecem ao evangelho; pois Isaías diz: Senhor, quem creu na nossa pregação? De sorte que a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus. (Romanos 10:14-17)

O fato é que, embora o Evangelho seja pregado a todos sem distinção, nem todos o ouvem, no sentido bíblico do termo:

Torna insensível o coração deste povo, endurece-lhe os ouvidos e fecha-lhe os olhos, para que não venha ele a ver com os olhos, a ouvir com os ouvidos e a entender com o coração, e se converta, e seja salvo. (Isaías 6:10)
Porque o coração deste povo está endurecido, de mau grado ouviram com os ouvidos e fecharam os olhos; para não suceder que vejam com os olhos, ouçam com os ouvidos, entendam com o coração, se convertam e sejam por mim curados. (Mateus 13:15)

Jesus deixa claro, no Evangelho de João, que nem todos ouvem Sua voz, crêem em Suas palavras e O seguem. E dá a razão disso:

Mas vós não credes, porque não sois das minhas ovelhas. As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão. (João 10:26-28)
Para este o porteiro abre, as ovelhas ouvem a sua voz, ele chama pelo nome as suas próprias ovelhas e as conduz para fora. Depois de fazer sair todas as que lhe pertencem, vai adiante delas, e elas o seguem, porque lhe reconhecem a voz. (João 10:3-4)
Ainda tenho outras ovelhas, não deste aprisco; a mim me convém conduzi-las; elas ouvirão a minha voz; então, haverá um rebanho e um pastor. (João 10:16)
Em verdade, em verdade vos digo que vem a hora e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a ouvirem viverão. (João 5:25)
Qual a razão por que não compreendeis a minha linguagem? É porque sois incapazes de ouvir a minha palavra. (João 8:43)
Quem é de Deus ouve as palavras de Deus; por isso, não me dais ouvidos, porque não sois de Deus. (João 8:47)

Pelas palavras acima fica claro que nem todos ouvem a voz de Jesus, que aqueles que ouvem é por que são as suas ovelhas e que aqueles que não ouvem, não ouvem porque não são "das minhas ovelhas" e não são "de Deus". Como o ouvir não é uma ação autônoma do homem, mas algo operado por Deus nele, fica claro que Apocalipse 3:20, visto isoladamente, não ensina o livre arbítrio.

Mas, estudar um texto de forma isolada não é uma boa prática de interpretação, pois o todo texto deve ser lido e entendido à luz de seu contexto. E quando colocamos o texto em questão dentro de seu contexto percebemos claramente que ele não é dirigido a descrentes e que, portanto, não é uma passagem evangelística.

O versículo em seu contexto não se refere a evangelismo

Vejamos o contexto bíblico imediato e mediato do texto em consideração:

Ao anjo da igreja em Laodicéia escreve: Estas coisas diz o Amém, a testemunha fiel e verdadeira, o princípio da criação de Deus: Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente.

Quem dera fosses frio ou quente! Assim, porque és morno e nem és quente nem frio, estou a ponto de vomitar-te da minha boca; pois dizes: Estou rico e abastado e não preciso de coisa alguma, e nem sabes que tu és infeliz, sim, miserável, pobre, cego e nu.

Aconselho-te que de mim compres ouro refinado pelo fogo para te enriqueceres, vestiduras brancas para te vestires, a fim de que não seja manifesta a vergonha da tua nudez, e colírio para ungires os olhos, a fim de que vejas.

Eu repreendo e disciplino a quantos amo. Sê, pois, zeloso e arrepende-te. Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele, comigo.

Ao vencedor, dar-lhe-ei sentar-se comigo no meu trono, assim como também eu venci e me sentei com meu Pai no seu trono. Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas.. (Apocalipse 3:14-22)

A série de sete cartas são dirigidas não a descrentes, mas aos crentes das igrejas estabelecidas na Ásia:

Dizendo: O que vês escreve em livro e manda às sete igrejas: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia. (Apocalipse 1:11)

Da mesma forma, ao concluir cada carta, há um aviso solene:

Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas. (Apocalipse 3:22)

Todo o texto contido nas cartas apocalípticas se dirigem e se referem à igreja, portanto a crentes. Não é um texto evangelístico no sentido que está falando a pecadores não crentes que precisam abrir a porta de seus corações a Jesus. Se bem que é verdade que as pessoas devem ser instadas a crerem na mensagem do Evangelho e a aceitarem a Jesus, mas o texto em apreço não é um apelo dirigido a quem ainda não se converteu.

A carta em que Jesus diz estar batendo à porta é dirigida ao "anjo da igreja" de Laodicéia, o que creio seja o pastor da igreja. Com isso, a mensagem é dirigida a todos os crentes laodicenses. Jesus é direto ao dizer "conheço as tuas obras" e ao taxá-los de mornos.

Eram crentes autoconfiantes, visto não sentirem falta de coisa alguma, sem perceberem a sua realidade de pobreza espiritual. Apesar disso Jesus os ama e por isso a disciplina seria certa. Conclama-os ao zelo e ao arrependimento. Todas essas palavras deixam claro que Jesus está se dirigindo a crentes e não a descrentes. Pois somente as obras de crentes tem valor gradual, a dos descrentes não tem valor algum, somente os filhos são disciplinados e somente crentes podem ter zelo com as coisas de Deus. Após dirigir essas duras palavras, e no mesmo fôlego, Jesus diz "eis que estou à porta e bato". Não há nada no texto que sugira, nem de longe, que Jesus mudou o destinatário de suas palavras. Ele continua falando com crentes, o que fica claro quando diz, em seguida, "ao vencedor", título somente atribuível aos feitos mais que vencedores por Cristo e pelo aviso solene para ouvir o que o Espírito diz "às igrejas".

Conclusão

A conclusão é que Apocalipse 3:20 não é dirigido a descrentes, mas a uma igreja que, confiante em seus próprios recursos, torna-se independente de Jesus, negando o Seu senhorio, deixando-O, na prática, de fora de seus assuntos. É uma igreja em que Jesus bate à porta, querendo assumir a posição de centralidade que lhe é de direito, como o cabeça da igreja. Concluir que Jesus está batendo à porta do coração de pecadores é fazer uma aplicação, com demasiada liberdade, de um texto fora de seu contexto.

Um texto deve ser compreendido à luz de seu contexto, apoiado sempre por passagens paralelas e em conformidade com o ensino geral das Escrituras, tendo em mente que a revelação bíblica é progressiva.

Assim, a análise isolada de um texto não serve para referendar uma doutrina, exceto quando claramente embasada por outras passagens bíblicas. Mas isto, não é o que ocorre com, o popular e extra-bíblico, livre arbítrio. Não há nas Escrituras uma só passagem que o suporte e mesmo as inferências feitas a partir de passagens como Apocalipse 3:20, após um melhor exame, mostram-se totalmente falhas. Isto por que, ao analisar o texto pressupondo a existência do livre arbítrio, parece que o mesmo é ensinado em tal passagem. Porém posto à prova, o pressuposto mostra-se um equívoco.

Assim, mesmo analisado de forma isolada, Apocalípse 3:20 não ensina nem suporta a filosofia humanista do livre arbítrio. E quando iluminado pelo contexto, tal passagem sequer se refere ou se dirige a não-crentes, mas a crentes mornos que negligenciaram o senhorio de Cristo e desenvolveram um falso senso de autossuficiência.

Texto revisado pelo autor deste blog em 10 de janeiro de 2016